No primeiro semestre do ano de 2024, não foram poucas as vezes em que os direitos da população da população LGBTQIAPN+ entraram em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF), o órgão mais importante do Poder Judiciário brasileiro e que tem a responsabilidade de, uma vez provocado, se pronunciar a respeito da validade, ou não, das normas nacionais, a partir da perspectiva da Constituição Federal de 1988.
Entre os destaques negativos, pode-se citar a decisão, de abril deste ano, do ministro André Mendonça (indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 2021 e conhecido por suas posições conservadoras), que rejeitou cinco pedidos de investigação do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) pelos crimes de transfobia, violência política de gênero, assédio e constrangimento. No 8 de março de 2023, celebração do Dia Internacional da Mulher, o parlamentar mineiro fez uso da tribuna da Câmara dos Deputados para, com a justificativa de supostamente defender os direitos das mulheres, atacar os direitos de mulheres trans. Na ocasião, Nikolas vestia uma peruca loira e se apresentava jocosamente como a deputada “Nikole”, com a finalidade de ridicularizar a identidade de mulheres trans, como se a mulheridade dessas pessoas fosse menos autêntica que a mulheridade de mulheres cis. O parlamentar, em seu discurso, chegou a afirmar que “as mulheres [cis] estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres [mulheres trans e travestis]”. Seu discurso pressupõe uma noção de gênero que rejeita aspectos psicossociais para o reconhecimento da condição da mulher, além do fato de que mulheres trans e travestis também são vítimas de violência de gênero – feminicídios, por exemplo. Ao fazê-lo, reifica (isto é, instrumentaliza, reduz à condição de coisa) as pessoas para que elas se encaixam na sua visão de mundo intolerante, negando a transexuais e travestis o direito à autonomia de seu corpo. Portanto, viola princípios constitucionais como a dignidade humana (art. 1º, inciso III, CF/1988) e o pluralismo político (art. 1º, inciso V, CF/1988), que fundamentam a nossa República.
Ainda assim, para o min. André Mendonça, o deputado federal bolsonarista está protegido pela imunidade parlamentar material, de acordo com o artigo 53, caput, da Constituição Federal: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Esta imunidade, devemos lembrar, foi criada na Constituição de 1988 como forma de evitar que os representantes do povo fossem perseguidos ideologicamente pela polícia, como ocorreu durante a ditadura militar de 1964. Note-se, porém, que ela não é absoluta: tanto que, em abril de 2022, o então deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ) foi condenado a 8 anos e 9 meses de prisão, pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e de coação no curso do processo, depois de postar na internet um vídeo em que atacava verbalmente os ministros do STF e defendia um novo AI-5. Para quem não sabe ou não se lembra, o Ato Institucional nº 5 foi um dos mais graves decretos baixados pela ditadura, pois conferia ao Presidente da República superpoderes, como o de fechar o Congresso Nacional, caçar mandatos de parlamentares e suspendia o direito ao habeas corpus (ação judicial que garante que pessoas presas injustamente sejam colocadas em liberdade).
Longe de relativizar os graves crimes praticados pelo então deputado bolsonarista carioca, ao comparar a abordagem dada aos dois casos, é inevitável a impressão de que, quando a vítima são os ministros do Supremo Tribunal Federal, a garantia constitucional de imunidade parlamentar é relativa. Em outras palavras, o parlamentar pode falar o que quiser, desde que não ofenda ou ameace a dignidade dos integrantes do Supremo. Já quando a vítima passa a ser a coletividade de transexuais e travestis, existe a impressão de que a imunidade parlamentar é encarada como absoluta – algo como: o parlamentar pode falar o que quiser, inclusive inferiorizar, ameaçar ou ofender a dignidade de transexuais e travestis.
Em síntese, a decisão do min. André Mendonça em favor do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) indica que a garantia constitucional da imunidade parlamentar protege o parlamentar para que cometa o crime de racismo por meio de discurso de ódio transfóbico. No entanto, a decisão deveria ser analisada e reformada pelos demais ministros do Plenário do STF, para que esse caso não se torne um precedente contra a comunidade trans.
Outro destaque negativo diz respeito à decisão tomada, em junho deste ano, pelo Plenário (coletivo em que se reúnem todos os 11 ministros) do STF por rejeitar seguimento ao Recurso Extraordinário n. 845.779, que poderia resultar no reconhecimento do direito constitucional de pessoas trans ao uso do banheiro de acordo com sua identidade de gênero, incluindo direito a indenização. Trata-se de enorme retrocesso histórico liderado pelos ministros Luiz Fux, Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Foram vencidos os ministros Roberto Barroso, Edson Fachin e Cármen Lúcia. O placar de 8 a 3 se fundamentou no entendimento de que o STF só analisa questões relativas à Constituição Federal de 1988, deixando para outros tribunais os temas restantes. No caso em análise, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina negou o direito à indenização para a mulher trans barrada em banheiro de shopping center, mas não com base em argumentos constitucionais e sim em normas de direito do consumidor, ao debater a efetiva existência de dano moral, ou não (“mero dissabor”). Pode-se considerar um grave retrocesso a decisão do STF de retirar a repercussão geral do RE 845.779 especialmente porque ela (a repercussão geral) já tinha sido deferida, conferindo ao tribunal a competência de decidir sobre o direito de transexuais usarem o banheiro de acordo com sua identidade de gênero, em novembro de 2014, ou seja, há quase dez anos. Poucas foram as ocasiões em que o Supremo reconheceu a repercussão geral de um caso para, depois, “voltar atrás”.
Apesar dessas notícias negativas para a população trans, o Supremo foi capaz de garantir alguns avanços no último mês de junho. Entre eles, merecem destaque o julgamento da ADPF 787, proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT) contra omissões do Sistema Único de Saúde – SUS no atendimento da população trans. De acordo com a ação movida pelo PT, o SUS deveria ser obrigado pelo Supremo a garantir atendimento médico especializado a pessoas trans respeitando-se a identidade de gênero do paciente, de modo que mulheres trans não cirurgiadas tivessem acesso a urologistas, enquanto homens trans não cirurgiados tivessem acesso a ginecologistas e obstetras. Ademais, a Declaração de Nascido Vivo – DNV, documento expedido pelos hospitais, deveria ser remodelada, a fim de que os termos “pai” e “mãe” fossem substituídos por outros termos mais inclusivos. O relator da ação, ministro Gilmar Mendes, num primeiro momento deferiu o pedido de liminar, que acabou sendo confirmada, em julgamento virtual encerrado em 28 de junho, pela totalidade dos ministros do STF, apenas com divergências parciais dos ministros. Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia.
Mais um motivo de comemoração para a comunidade trans e para a comunidade LGBTQIAPN+ como um todo foi o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5668. De iniciativa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), a ação questionava a omissão do Plano Nacional de Educação – PNE em sua obrigação de combater expressamente as discriminações e o bullying machista e homotransfóbico. Há dez anos, o tema gerou amplos debates na sociedade, na medida em que setores conservadores católicos e evangélicos se mobilizaram para censurar quaisquer menções a termos como “diversidade sexual” e “gênero”, resultando até mesmo na aprovação de projetos de lei nos planos municipal e estadual que proibiam os debates sobre questões de gênero e sexualidade nas escolas. Agora, o ministro Edson Fachin, relator da ADI 5668, se posicionou a favor da ação movida pelo PSOL, seguido pela maioria de seus colegas. Para ele, ainda que o PNE mencione em seus objetivos a “erradicação de todas as formas de discriminação”, deve-se explicitar que entre elas estão incluídas as discriminações por gênero, orientação sexual e identidade de gênero. O único ministro a votar contra a maioria foi Nunes Marques (indicado ao STF em 2020 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro).
Como se vê, essa sequência de idas e vindas do Supremo Tribunal no que diz respeito à defesa dos direitos da população LGBTQIAPN+ e, mais especificamente, da população trans reforça a sensação de insegurança e incerteza que caracterizam a cidadania dessa minoria ssocial, bem como a noção de que inexiste um consenso na sociedade de que essas pessoas são igualmente merecedoras de respeito e de dignidade pela sociedade e pelo Estado.
Ao mesmo tempo, pode-se entender que a hesitação do Poder Judiciário em se posicionar de forma assertiva em defesa dos direitos da população LGBTQIAPN+ faz parte de um contexto maior de conflito entre os Poderes e os atores políticos da República, o que, longe de justificar moralmente – no sentido de tornar “compreensível” – os movimentos do STF, contribui para entender (i) o porquê se está titubeando nessa matéria e (ii) o porquê de fazê-lo agora.
Tome-se por ponto de partida desta análise o Poder Legislativo. Para a população LGBTQIAPN+, o Legislativo federal nunca foi um aliado, muito pelo contrário. A única lei que prevê o termo “orientação sexual” foi aprovada em 2006, trata-se da Lei Maria da Penha – e nunca mais nenhuma outra legislação foi aprovada que interessasse essa minoria social.
Em termos temporais, foi a partir do ano 2011 que todos os direitos da população LGBTQIAPN+ em âmbito federal foram garantidos pelo Poder Judiciário, com o julgamento a ADPF 132 (união homoafetiva). Todos os direitos duramente conquistados pela comunidade LGBTQIAPN+ foram alvo de duras críticas por parte de parlamentares reacionários, os quais buscaram revogá-los por meio de propostas de Decretos Legislativos, Projetos de Lei ou Emendas à Constituição.
Mais recentemente, essa dinâmica de (i) avanço no Judiciário seguido por (ii) ameaça de revide/retrocesso no Legislativo ganhou as manchetes dos jornais, das redes sociais e das TVs de nosso país. Trata-se do caso do Projeto de Lei nº 1.904/2024, que buscava aumentar para até vinte anos a pena de prisão de quem praticasse ou participasse de abortos acima de 22 semanas de gestação. Ele não começou “do nada”. Em maio deste ano, o ministro do STF Alexandre de Moraes concedeu liminar na ADPF 1.141 para suspender a Resolução nº 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia um tipo de procedimento abortivo previsto em lei e recomendado pela OMS chamado assistolia fetal. Além disso, determinou a suspensão de todos os processos disciplinares abertos contra médicos com base nessa normativa. Em retaliação ao STF, Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, determinou a votação-relâmpago do regime de urgência do PL nº 1.904/2024, que endurecia as penas para a prática do aborto legal após as 22 semanas de gestação.
Outro caso parecido de retaliação do Legislativo contra a atuação do Judiciário ocorreu em setembro do ano passado, quando a min. Rosa Weber pautou a ADPF 442, que trata da descriminalização do aborto no Brasil, antes de sua aposentadoria. Logo após, foram inúmeras ameaças de endurecimento da legislação brasileira por parte de parlamentares e o próprio Presidente do STF min. Luís Roberto Barroso precisou reafirmar publicamente que a ação não seria pautada tão cedo, como forma de tentar pacificar as relações entre Legislativo e Judiciário. Isso sem mencionar as ameaças explícitas dos senadores, em fins de 2023, por exemplo, de aprovar legislação que criasse mandatos para os ministros do STF, limites para o poder de conceder decisões monocráticas e até mesmo a imposição de prazo para pedidos de vistas dos autos processuais.
Está instaurado, sem dúvidas, um conflito entre Legislativo e Judiciário, que não é de hoje e que vem se arrastando, cuja marca é a atuação do Supremo no sentido de focar suas forças em manter suas prerrogativas tanto quanto possível, isto é, evitar que sejam aprovados pelo Legislativo projetos de lei e emendas constitucionais que imponham limites à atuação dos seus ministros, tais como citados acima (tempo de mandato, limite à concessão de decisões monocráticas ou prazo legal para as vistas de processos são alguns exemplos). Isso justifica a atitude do Supremo de eventualmente deixar em segundo plano a defesa de pautas sensíveis como o direito ao aborto ou o direito ao uso do banheiro por pessoas trans de acordo com sua identidade de gênero, já que as mesmas implicam em aumento de conflitos com representantes do Poder Legislativo.
Diante desse conflito, o Poder Executivo, liderado pelo presidente Lula, se vê num dos momentos mais enfraquecidos da Nova República pós-redemocratização: o presidencialismo de coalizão não funciona mais, o arco democrático que serviu para elegê-lo não encontra eco no Congresso Nacional (ao contrário, sua base é fragilizada e depende de negociação a cada votação), e as dificuldades são agravadas por uma multiplicidades de 30 partidos políticos com cadeiras no Congresso, em que há o claro predomínio do Centrão e de forças da extrema direita bolsonarista. Com esse quadro desfavorável, Lula e o PT têm orientado sua bancada a focar esforços naquilo que é tido como prioritário: a pauta econômica. Projetos tidos como de costumes (neles incluídas as questões LGBTQIAPN+) são consideradas pautas em que o governo entra para perder e, portanto, não vai gastar seu capital político. Exemplos não faltam: o projeto de lei das saidinhas, o projeto de lei da criminalização das fake news, a emenda constitucional das praias públicas e, mais recentemente, o projeto de lei que aumentava a pena de prisão nos casos de aborto após 22 semanas. Em todos esses casos, quem liderou a resistência a esses retrocessos não foi o governo, mas parlamentares de esquerda, movimentos sociais, artistas e a sociedade civil organizada, o que denota o desinteresse da base governista nos temas que não digam respeito à pauta econômica.
Alguns outros fatores devem ser levados em conta neste conflito de atores e poderes políticos. Arthur Lira, o presidente da Câmara dos Deputados, pretende se candidatar para uma vaga de senador pelo estado de Alagoas nas eleições de 2026, competindo com Renan Calheiros, este último aliado do presidente Lula. Assim, diante de um país de polarização calcificada, Lira optou por lutar pelos votos da direita bolsonarista, como tem feito até aqui. Isso explica alguns dos seus gestos no sentido de viabilizar projetos de lei de bolsonaristas, os quais, sem sua ajuda, muito provavelmente, não iriam muito longe. O atual presidente da Câmara está empreendendo esforços a fim de se posicionar nas fileiras bolsonaristas como um representante genuíno da extrema-direita, daí porque pautou e aprovou a urgência do PL 1.904/2024, que aumentava as penas para o aborto legal acima de 22 semanas. Além do “ fator Lira”, não se pode esquecer a forte ascensão da extrema-direita no Brasil. Embora não represente um setor amplo da sociedade brasileira, ela é capaz de se articular e pautar o debate público. No Brasil, um único parlamentar é capaz de judicializar um projeto de lei, impedindo sua tramitação, possui direito a voz e voto no Legislativo e, assim, é capaz de influenciar seus colegas no Congresso. Isso porque o Legislativo é uma casa composta por representantes eleitos por regras proporcionais, não majoritárias. Ao mesmo tempo que isso é bom para minorias, como a população LGBTQIAPN+, que se vê representada por pessoas como as deputadas Erika Hilton e Duda Salabert, também significa que pessoas nem sempre boas conquistam espaço. Não precisa ser o melhor, basta cumprir regras de proporcionalidade (atingir o coeficiente eleitoral). Esse tipo de funcionamento do Congresso Nacional estimula comportamentos extremistas, facciosos: é o que vemos, por exemplo, na atuação de parlamentares de extrema direita, que muitas vezes propõem projetos de lei sem qualquer fundamento, abertamente inconstitucionais (por exemplo que pretendem proibir o casamento homoafetivo ou a redesignação sexual pelo SUS) não porque sejam bons projetos ou viáveis, mas porque engajam sua audiência. Este é o modus operandi da extrema-direita: usam ameaças contra os direitos e a frágil cidadania da população LGBTQIAPN+ como forma de mobilizar sua base social e engajar seus eleitores.
Há, assim, um cenário em que o Judiciário se vê emparedado pelo Legislativo. Este, por sua vez, está hipertrofiado, avançando tanto contra o Judiciário, quanto contra o Executivo, ao abocanhar nacos do orçamento público. O Executivo, intimidado, está refém de um tipo de semipresidencialismo, em que a defesa dos direitos da população LGBTQIAPN+ contra as ameaças empreendidas pela extrema-direita via Legislativo não é uma de suas prioridades.
A melhor estratégia de resistência, neste momento, para a população LGBTQIAPN+ é institucionalizar-se para ocupar os espaços de poder e fazer as disputas possíveis onde elas estão acontecendo: isso demanda muito trabalho de advocacy junto ao Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo, como forma de vocalizar as demandas da sociedade civil por meio dos instrumentos que a lei garante. São exemplos as petições de amici curiae em ações judiciais relevantes, o acionamento do Ministério Público em casos de direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, bem como o acompanhamento de projetos de lei para neles incidir estrategicamente.
Todo esse trabalho institucional, porém, deve ter em conta a noção de que existe um contexto maior de conflito entre atores e poderes políticos, e nem sempre se conseguirá avançar – por vezes, será possível apenas barrar retrocessos. Isso não significa abdicar do direito de lutar por uma sociedade igualitária, mas atuar estrategicamente para que os esforços e a energia do movimento LGBTQIAPN+, que são limitados, sejam efetivos na luta por direitos.