Robert Gagnon, um teólogo conservador do novo testamento, autor do livro A Bíblia e a Prática Homossexual, não nega que a passagem de Sodoma descreve violação da lei da hospitalidade. Porém, ele defende a seguinte tese:
“No entanto, o que torna esse caso de falta de hospitalidade tão vil e leva a palavra “Sodoma” a ser usada em círculos judaicos e cristãos posteriores como sinônimo de crueldade com visitantes de fora é a forma específica com que a crueldade se manifesta: o estupro homossexual”.
Gagnon, A.J.Robert. A Bíblia e a Prática Homossexual. Pág. 81
Isto é, Gagnon diz que o problema grave era o abuso sexual ser homossexual e que diante disso a violação da lei da hospitalidade era vil, sem muita importância, o que é nitidamente uma fala de alguém preconceituoso. Repare como fica evidente o preconceito do autor no trecho abaixo:
“Mas, em última análise, uma vez que a história é usada como uma cena típica para caracterizar o abismo da depravação humana em Sodoma e Gomorra e, dessa maneira, legitimar a decisão de Deus de apagar essas duas cidades da face da terra, é provável que o pecado de Sodoma não seja somente a falta de hospitalidade ou mesmo a tentativa de estupro de um hóspede, mas, sim, a tentativa de estupro homossexual de hóspedes do sexo masculino”.
Ou seja, Gagnon deduz que o problema de Sodoma foi a violência específica homossexual em si, haja vista que o texto caracteriza o relato como sendo o “abismo da depravação humana”. Nesse sentido, defende que a violação da lei da hospitalidade e o estupro em si seria de importância secundária, diante do sexo homogenital.
Pois bem. O objetivo deste artigo é analisar a lógica da tese defendida por Robert Gagnon.
Há duas passagens bíblicas que precisam ser minuciosamente analisadas, porque elas dizem tudo sobre o pecado dos homens de Sodoma.
O Evangelho Segundo Mateus descreve no capítulo 10 que Jesus chamou os seus doze discípulos e deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expulsarem e para curarem toda enfermidade e todo mal. O versículo 7 descreve Jesus dizendo: “ide e pregai que é chegado o Reino dos céus”.
Nos versículos seguintes Jesus os adverte: “E, em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, procurai saber quem nela seja digno e hospedai-vos aí até que vos retireis. E, quando entrardes nalguma casa, saudai-a. E, se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz. Mas, se não for diga, torne para vos a vossa paz”.
E aí vem a parte chave do texto. Jesus seguiu dizendo: “E, se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquela casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés. Em verdade, vos digo que, no Dia do Juízo, haverá menos rigor para o país de Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade”.
Note que Jesus fala em hospedagem e adverte acerca das situações nas quais ninguém os recebesse. A situação é semelhante àquela descrita em Sodoma.
Segundo relata Gênesis 19, os dois visitantes chegaram a Sodoma e Ló estava na porta da casa. Ló havia aprendido a importância da hospitalidade, pois ele era um estrangeiro que havia ido residir em Sodoma.
Quando os homens de Sodoma tomam conhecimento de que havia estrangeiro na casa de Ló, se dirigem até lá e começam a exigir que Ló colocasse para fora aqueles homens para que fossem abusados.
Quando Ló sai de dentro da casa para defender seus hospedes e oferecer suas duas filhas, os moradores de Sodoma ficam mais enraivecidos e dizem: “este é estrangeiro aqui e quer ser juiz entre nós. Pois te faremos mais mal a ti do que a eles”.
Óbvio que eles ficaram enfurecidos. A questão não era o sexo em si, mas sim a humilhação daqueles visitantes.
Em outras palavras eles estavam dizendo: “se já não bastasse termos permitido que você habitasse aqui, ainda quer que deixemos receber outros estrangeiros e nos diga o que é certo ou errado?”
Nesse relato de Gênesis nada acontece porque os visitantes eram anjos que tinham o poder de cegar aqueles moradores, de modo que eles não acharam a porta de entrada da casa de Ló e desistiram.
Porém, em outra passagem bíblica o final foi diferente.
Na passagem descrita no Livro de Juízes 19, diz que um levita viajava com sua concubina e um servo até que chegaram na cidade de Gibeá. O relato diz que ninguém quis hospedá-los na cidade, de modo que foram para uma praça. Contudo, um senhor, vendo-os, iniciou um diálogo e resolveu hospedá-los. Nisso, os homens de Gibeá tomaram conhecimento de que havia estrangeiro sendo hospedado e foram até a casa daquele senhor. A situação era semelhante. Aquele senhor hospitaleiro também era peregrino em Gibeá. Isto é, era um estrangeiro recebendo outros estrangeiros. Os homens de Gibeá não gostaram e exigiram que aquele visitante levita fosse colocado para fora para ser abusado. O senhor sai de dentro de sua casa e tenta convencê-los a nenhum mal fazer ao levita, oferecendo sua filha e a concubina deste.
A diferença deste relato com o de Sodoma está no fato de que o próprio levita pega sua concubina e lança fora da casa e aqueles homens abusam dela. A concubina vem a falecer depois daquele ato, o que gerou uma revolta no meio de Israel porque os homens que praticaram aquele ato eram da tribo de Benjamin, uma das 12 tribos de Israel.
Se a tese de Gagnon fosse plausível, por que a violência sexual coletiva heterossexual descrita na passagem de Juízes 19, que os homens de Gibeá cometeram contra a concubina do levita, gerou tanto escândalo às tribos de Israel? Segundo descreve Juízes 20:12, as tribos de Israel mandaram questionar os homens de Gibeá: “Que maldade é esta que se fez entre vós”.
Requereram que os homens de Gibeá entregassem aqueles que haviam cometido aquele abuso, mas eles se recusaram. Disso, desencadeou uma batalha entre as 11 tribos de Israel contra os da tribo de Benjamin (moradores de Gibeá). Os benjamitas saíram derrotados.
Ou seja, a violação da lei da hospitalidade e a violência sexual foram tão insignificantes assim? O cenário era o mesmo. Os homens de Gibeá também queriam inicialmente a violência homossexual. E repare como Gagnon é contraditório ao falar da passagem de Juízes 19:
“Mais tarde o levita pôde referir-se ao que aconteceu com sua concubina, juntamente com a tentativa de tirarem a vida do próprio levita, como ‘nebala’ (20.6; cf. 20.10). Aliás, ao relatar os acontecimentos em Gibeá, o levita não diz nada sobre uma tentativa de estupro homossexual, mas somente as palavras “pretendiam me matar” (20.5). Deixando totalmente de lado a questão do ataque homossexual, o estupro e o assassinato heterossexual da concubina do viajante foram considerados as maiores atrocidades cometidas pelos israelitas desde a época do Êxodo do Egito (1930)”.
Essa fala é tão contraditória que chega a ser confusa, primeiro porque na passagem de Juízes 19 o verbo “conhecer” é o mesmo da passagem de Gênesis 19 e Gagnon traz a tradução como sendo “ter relações sexuais”; segundo porque ele defende que o sexo homossexual não foi a questão mais importante em Juízes só pelo fato de que os homens de Gibeá concretizarem a violência heterossexual contra a mulher do levita. Caso os homens de Gibeá tivessem violentado o Levita, certamente Gagnon diria que a violência sexual em si e a violação da lei da hospitalidade seriam nada diante da especificidade do abuso específico homossexual.
Além disso, Gagnon se vale do fato de o levita ter contado o ocorrido com a expressão “intentaram matar-me”.
Ora, é óbvio que o levita após ver sua concubina morta, iria concluir que o seu fim seria o mesmo.
Ou seja, Gagnon, diante de duas situações idênticas, utiliza uma explicação para um relato e outra explicação para o outro tão somente porque os desfechos são distintos, ignorando que a intenção dos corações dos homens de Sodoma e de Gibeá era a mesma: humilhar por meio do abuso sexual, violando a lei da hospitalidade.
Agora, voltemos à análise da fala de Jesus quando envia os seus discípulos.
Jesus fala em hospitalidade e fala que as cidades que não os recebesse seriam condenadas com mais rigor no dia do Juízo.
Pois bem. Caso o grande pecado de Sodoma fosse o sexo homossexual em si, por que Jesus citou somente o contexto da hospitalidade?
Eu respondo: porque o sexo que os homens de Sodoma queriam praticar era apenas o MEIO para se alcançar a FINALIDADE. A FINALIDADE era humilhar, subjugar, dominar, violando a Lei da Hospitalidade.
Aqueles homens não eram homossexuais, mas apenas indivíduos que tinham a cultura de subjugar o estrangeiro por meio de violência sexual. A partir disso, alguns entram na questão do papel da mulher naquele tempo, a qual constituía uma propriedade do homem da casa. Ser subjugado sexualmente para um homem significava ser colocado no mesmo patamar da mulher. (Enfim… valores da época).
A despeito disso, ao analisar o pecado de Sodoma, Jesus em momento algum citou o abuso sexual em si, mas falou apenas da real intenção e finalidade dos sodomitas.
Nesse sentido, veja a comparação feita por Jesus e analise se o que Jesus reprovou foi a violação da lei da hospitalidade ou o sexo homossexual em si.
De forma evidente, cristalina e sem qualquer dúvida, Jesus estava alertando sobre a falta de hospitalidade, dizendo inclusive que as cidades que não recebessem os discípulos teriam um castigo maior do que o recebido por Sodoma. Ou seja, o castigo que Sodoma recebeu foi pela violação da Lei da Hospitalidade. Jesus foi direto e reto.
Não há fundamento na tese defendida por Robert Gagnon.
O mesmo sentido é percebido quando Jesus compara Sodoma a Cafarnaum. Segundo Mateus 4:13 Jesus habitou em Cafarnaum, tendo operado vários milagres lá. Mas os fariseus chegaram a dizer que ele expulsava os demônios “pelo príncipe dos demônios” (Mateus 9:34).
O Evangelho Segundo João capítulo 6 descreve que quando Jesus se apresentou como o Pão que desceu do céu para dar vida ao homem, alguns questionaram: “não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos? Como, pois, diz ele: Desci do céu?”.
Quando Jesus finaliza o seu ensino, o relato diz que muitos deixaram de o seguir porque acharam o discurso duro de ouvir. Eles haviam entendido o ensino de Jesus na literalidade, achando que iam precisar comer a carne de Jesus. Está é, inclusive, a famosa passagem que Jesus questiona se os discípulos também vão deixá-lo e Pedro responde: “Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna”.
No capítulo 11 Jesus começa a falar de determinadas cidades e cita Cafarnaum, dizendo que se em Sodoma tivessem sido feitos os milagres que foram realizados naquela cidade, “ela teria permanecido até hoje”.
Ou seja, se em Sodoma tivessem sido feitos os milagres que foram em Cafarnaum, os moradores dela teriam crido e sido hospitaleiros. Consequentemente, a cidade não teria sido destruída. Observe que em Cafarnaum não houve contexto sexual, mas apenas o de hospitalidade.
Portanto, a cidade foi destruída porque violava a Lei da Hospitalidade. Esse foi o ponto que levou a Bíblia a descrever seus moradores como maus e grandes pecadores diante de Deus.
De modo algum isso pode ser comparado a relacionamentos homossexuais consensuais e muito menos homoafetivos.
Ainda que se levasse em consideração a subjugação, equiparando o homem à mulher, o fato é que os valores eram outros e a mulher hoje não é socialmente considerada uma propriedade. Ainda há muito do patriarcado para ser derrubado, mas a mulher de hoje não é a mesma do tempo do antigo testamento, não havendo sentido em dizer ser humilhante para um homem gay ser passivo.
Além disso, tal linha de pensamento excluiria de qualquer condenação os gays que só fossem ativos, o que não apresenta qualquer coerência. Deus não é Deus de confusão.
O fato é que, quanto à passagem de Sodoma, Robert Gagnon falou, mas não convenceu.