Recentemente, em entrevista ao podcast ‘Positivamente’, apresentado por Karina Bacchi, a cantora gospel Bruna Karla entrou para a lista dos cantores gospel evangélicos que fazem uso da influência que têm para declarar, supostamente em nome de Deus, que os homossexuais vão para o inferno. A declaração, por óbvio, causou indignação por parte da Comunidade LGBTQIAP+, assim como por parte de celebridades que reprovaram a atitude da cantora.
Segundo Bruna Karla, um amigo seu a convidou para ir ao casamento dele e ela respondeu da seguinte forma:
“eu olhei pra ele e fui bem sincera e eu disse assim: ah quando você se casar com uma mulher linda, cheia do poder de Deus, eu vou sim”
A cantora relatou que a resposta do amigo foi: “você sabe que não é isso que eu estou perguntando”
Bruna segue, na entrevista, relatando a sua resposta:
“Eu estou falando de um amigo homossexual, que a gente tem essa liberdade. Eu falei: pois é, o dia que eu aceitar cantar no seu casamento com outro homem, eu posso parar de cantar sobre a Bíblia e sobre Jesus. Então, aos meus amigos, aos meus queridos ouvintes homossexuais, o que Deus tem pra sua vida é libertação. O que Ele tem pra sua vida é algo que Ele sonhou pra você. Receba todo o meu amor e o respeito porque Jesus não sonhou isso pra você. Foi o que eu disse pro meu amigo. Eu disse: amigo, o que Deus sonhou pra você não foi isso. Você me perdoa. Lá no julgamento, quando o Senhor Jesus voltar, e quando você tiver… não vai estar, eu falei pra ele…. lá você vai dizer assim: poxa, a Bruna andou comigo. Poxa vida, ela sabia que eu estava errado, que o caminho que eu estava escolhendo era de morte, e de morte eterna”.
Para além de uma opinião preconceituosa, a fala da cantora Bruna Karla reflete mais uma vez o discurso de pessoas que reproduzem aquele ensino enraizado, demonstrando uma falta de conhecimento bíblico que transpasse a literalidade. Na literalidade a Bíblia traz a equivocada ideia de que condena pessoas LGBTQIAP+. Porém, a letra mata e Jesus mandou examinar as escrituras. Examinar é analisar de forma minuciosa, o que vai além de uma simples leitura.
Além disso, reflitamos no seguinte ponto: quem será que concedeu o poder para esses cantores evangélicos afirmarem quem vai ou não para o inferno? Teria fundamento bíblico?
Analisemos a fala da cantora à luz de um examine das Escrituras.
Bom, se a cantora Bruna Karla transmitiu sua fala fundamentada na passagem de Gênesis 19, a qual descreve a destruição da cidade de Sodoma, ela precisa aprender que os sodomitas objetivavam a prática de uma violência sexual coletiva, o que não pode ser equiparada ao relacionamento consensual vivido pelas relações homossexuais. Certamente a cantora Bruna Karla não tem dificuldade em diferenciar um abuso sexual coletivo heterossexual de um relacionamento consensual heterossexual. Por que, então, teria a dificuldade no contexto homossexual? O contexto de Sodoma era uma violência praticada com intuito de dominar, humilhar, violando a Lei da Hospitalidade, tão bem falada por Jesus quando citou a cidade de Sodoma. Inclusive, Ezequiel e Jesus falam de forma muito simples e direta acerca do pecado dos sodomitas.
Caindo por terra a tese de Sodoma, não subsiste a condenação imposta por meio da Carta de Judas, ou da II Epístola de Pedro ou pelo Livro de Apocalipse. Todas citam Sodoma.
Por sua vez, se a cantora Bruna Karla transmitiu sua fala fundamentada na passagem de Levítico 18:22 e acredita que é abominação para Deus o homem se deitar com outro homem, ela precisa aprender qual o original hebraico traduzido como ‘abominação’. Se ela pesquisar, verá que a palavra é ‘Toevah‘, a qual é traduzida ela Bíblia de Estudo Palavra-Chave da Casa Publicadora da Assembleia de Deus como sendo “abominação, especialmente idolatria ou ídolo”. Logo, o que a passagem de Levítico condena é um ato sexual muito comum na antiguidade. Durante os rituais a deuses pagãos havia o culto da fertilidade, o qual era celebrado com relações sexuais como meio de oferta à divindade. O sexo era um meio para a idolatria. Nesse contexto, o sexo entre homens e mulheres praticados como meio para idolatria também era abominável. Inclusive, toda descrição do capítulo 18 de levítico traz o ritual à deusa Ishtar ou Astarte ou Aserá. Basta pesquisar.
Passando para o Novo Testamento, se a cantora Bruna Karla se valeu de Romanos 1:26-27 para expor sua opinião, ela também não encontra amparo bíblico. Por mais que os conservadores não aceitem que a Carta aos Romanos não condena os homossexuais, o fato é que ninguém pode ignorar a coesão e a coerência na hora de interpretar um texto. Paulo diz: “conhecendo a Deus não adoraram como Deus”, “tornaram a glória de Deus incorruptível na semelhança de homem corruptível, de animais, de répteis”, e logo em seguida o apóstolo usa a expressão “pelo que”, dizendo “pelo que Deus os entregou a paixões infames”, ou como diz algumas versões bíblicas “Por causa disso Deus os entregou a paixões infames”.
Primeiro ponto: o termo ‘Pelo que’ traz uma relação de causa e consequência com o que Paulo estava dizendo antes. Essa análise se chama coesão. É como se o apóstolo dissesse: “Por causa da idolatria, Deus os entregou, porque eles não quiseram saber de Deus. Conheceram a Deus, mas não o adoraram como Deus. Por isso Deus os entregou a paixões infames”.
Segundo ponto: ‘Paixões’ vem do grego antigo ‘pathos’, que não significa paixão romântica, mas significa ‘depravação’, ‘luxúria’. Era como se Paulo dissesse: “Por causa dessa idolatria, Deus os entregou à depravação, luxúria, para desonrarem os seus corpos”. Isso não condiz com relações homoafetivas formadas por pessoas que se amam.
Paulo segue falando que as mulheres deixaram seu ‘uso natural’ ou ‘contrário à natureza’ e os conservadores adoram dizer que ‘contrário à natureza’ é igual à ‘contrário à natureza de Deus’. Ocorre que ‘natureza’ é do grego antigo ‘physis’ e essa palavra não se refere a ‘leis universais de Deus’, até porque os gregos não tinham essa concepção. Para os gregos, ‘physis’ dizia respeito à natureza inerente à pessoa. Desse modo, Paulo estava dizendo que a natureza daquelas mulheres e daqueles homens não era voltada para aquele sexo, mas por alguma razão eles estavam praticando. E essa razão, ou essa causa, era exatamente a idolatria que Paulo descreve no começo. Por isso ele diz: ‘por causa disso Deus os entregou’. Ou seja, por causa da idolatria sexual em cultos pagãos, contexto comum na Roma e Grécia Antigas, é que Deus os entregou à desonra de seus corpos. Era disso que Paulo falava.
Por fim, se a cantora Bruna Karla se refere a I Carta aos Coríntios 6:9-10, a situação dela fica pior ainda, já que as duas palavras erroneamente traduzidas em algumas versões como ‘homossexuais ativos e passivos’ ou ‘práticas homossexuais’ são as duas palavras gregas ‘malakoi’ e ‘arsenokoitai’. Malakoi era usada para designar uma veste fina, como quando Jesus se refere as vestes de João Batista ou então para se referir ao caráter de alguém, no sentido de mole. Versões bíblicas do século XX traduzem malakoi como ‘efeminado’. O historiador bíblico do século I Flávio Josefo diz que os hebreus, no tempo de Juízes, estavam efeminados, sem querer trabalhar, por já estarem ricos. Ou seja, estavam preguiçosos, vagabundos. Do mesmo modo, arsenokoitai se referia ao sexo explorador, abusador. Inclusive, a Bíblia de Estudo da CPAD traduz essa palavra como ‘abusador de’. Por isso a tradução de versões do século XX traz ‘sodomitas’, porque era o que aqueles homens objetivavam: abusar de dois anjos. Isso nada tem ligação com relações homoafetivas ou homossexuais consensuais.
Logo, seja pelo Antigo Testamento, seja pelo Novo Testamento, um estudo aprofundado da Bíblia desconstrói essa suposta condenação, que, inclusive, a Igreja nem ensinava até o século XII, havendo relatos históricos de que até esse momento a Igreja aceitava e abençoava relações entre iguais.
A partir do século XII a igreja católica começou a condenar todo o sexo que não fosse para procriação. Nesse contexto não foi apenas o sexo entre iguais, mas também o sexo anal e oral entre homem e mulher. Ocorre que tal condenação passou a existir em decorrência da procriação e deixou de ser necessária após a explosão populacional ocorrida a partir do século XIX. Contudo, o regramento que havia sido criado com uma finalidade, tomou a proporção que conhecemos, ao ponto de a homossexualidade ser considerada doença, crime e pecado. O fato, contudo, é de que até o século XII não havia condenação por parte da igreja e a preocupação era apenas uma: reprodução. Era um período de pestes e guerras, com alta taxa de mortalidade e baixa expectativa de vida. Era um contexto social. Nunca houve uma fala de Deus em relação aos relacionamentos vividos entre pessoas do mesmo gênero.
E o interessante é que o sexo anal e oral entre e homem e mulher não seguiu recebendo a mesma condenação. Teria restado apenas o preconceito?
Será que a cantora Bruna Karla sabe disso?
De todo modo, voltemos para o começo deste post: quem deu o poder para Bruna Karla dizer quem vai para o inferno? E que poder é esse que esses cantores têm sobre tantos LGBTQIAP+?
Permitam-me compartilhar uma tese.
Fazemos parte de uma geração que viveu muitos anos em igrejas ouvindo Diante do Trono, Aline Barros e outros. Foram cantores gospel que marcaram nossa geração. Nisso, muitos de nós, lésbicas e gays, nos sentimos feridos com os pronunciamentos condenatórios desses que outrora eram especiais para nós e ainda o são para alguns, infelizmente.
E mais infelizmente ainda, eles sabem disso e se aproveitam disso. Se eles precisam se render para o fato de que a Bíblia nunca nos condenou, nós, por outro lado, precisamos olhar mais para Cristo e menos para eles.
Precisamos parar de dar tanto poder para eles, já que a Bíblia nunca deu. Hoje a teologia inclusiva nos ensina isso, o que demonstra que Deus também nunca conferiu esse poder. Vale registrar que nem com a tal ‘cura gay’ Deus anuiu. Nunca houve ‘cura gay’. Foram derrotados pelo próprio discurso. Um discurso que Deus nunca autorizou. Tanto que o discurso falido e derrotado teve que mudar. Agora eles pregam: ‘você pode ser homossexual, só não pode praticar’.
Claro, se eles estivessem minimamente preocupados com a real opinião de Deus, certamente se questionariam acerca de o porquê Jesus curou a todos que a ele se chegaram e apenas os homossexuais e transexuais não são alvos do seu poder. Ressalto que nesse contexto não cabe a experiência de Paulo, já que se tratava de uma ‘fraqueza’ que o apóstolo tinha e que não tinha implicação para o seu chamado e para a sua salvação, tanto que Cristo lhe diz que aquilo não o impedia de realizar o seu ministério. É muito diferente do contexto colocado para os LGBTQIAP+ nas igrejas.
Logo, o que menos tem importado nesse contexto, ao menos para esses cantores, é a opinião de Deus. Eles apenas querem condenar e continuar declarando uma fala que diz muito mais do preconceito deles, do que da opinião verdadeira do Criador.
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